quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

A mobilidade por bicicleta e o anti-jornalismo

 8/12/2010 – Por Uirá Lourenço (Servidor público e ciclista por opção)



Resolvi escrever sobre dois temas que me fascinam: mobilidade urbana e jornalismo. Alguns fatos recentes me fizeram pensar mais na relação entre os assuntos. Na verdade, o estopim se deu após a notícia veiculada no jornal O Diário, de Maringá (Paraná), no dia 3 de dezembro.

A matéria cita Brasília como exemplo de investimento em transporte por bicicleta. Os dados do Distrito Federal apresentados no texto – quase 130 km de ciclovias e 400 mil usuários de bicicleta como meio de transporte – não condizem com a realidade e escondem os riscos dos que optam pela bicicleta no agressivo trânsito da capital federal.

O verdadeiro jornalismo compromete-se com a verdade. A apuração dos dados “oficiais” enviados pelo governo mostra-se fundamental. Uma análise mais detalhada, entrevistas com usuários de bicicleta ou uma simples pedalada revelaria o verdadeiro contexto de Brasília.

A matéria afirma: “Até 2009, de acordo com o governo do Distrito Federal, eram quase 130 quilômetros lineares de ciclovias, construídas ao custo de R$ 7,5 milhões.” A própria página do Programa Cicloviário do Distrito Federal (Pedala-DF) informa que são 42 km de ciclovias. Vale lembrar o conceito de ciclovia – via totalmente segregada do tráfego motorizado. Ou seja, não se podem incluir acostamentos, ciclofaixas nem os percursos na terra abertos nos amplos canteiros por pedestres e ciclistas que não dispõem de espaço seguro (os chamados caminhos de rato).
Trilha no canteiro – ciclovia, calçada ou improviso?

O que dizer de tamanha discrepância nos números? Possivelmente, o texto foi escrito por alguém que imagina uma cidade ideal cortada por centenas de quilômetros de ciclovia. Alguém que desconhece a cidade, não usa a magrela no dia a dia e ainda crê na solução mágica da palavra ciclovia.

Da mesma forma, o número de usuários de bicicleta apresentado está errado, excessivo. Desconheço uma fonte que forneça números confiáveis de ciclistas no DF (geralmente, os dados estatísticos referem-se ao trânsito motorizado), mas afirmo com tranquilidade que a proporção de ciclistas é muito menor. Uma olhada de relance em qualquer via revela a desproporção entre carros e bicicletas. Com 400 mil ciclistas para uma população de cerca de 2,5 milhões teríamos uma Brasília muito mais agradável.
Ciclista espremido pelos carros na EPTG (“Linha Verde”)


Precisamos de muito mais para sentir os benefícios da cultura ciclística presente em Copenhague e Amsterdam, onde a bicicleta é utilizada em quase metade dos deslocamentos diários. É necessário ter segurança no trânsito, campanhas educativas, fiscalização das infrações (alguém já viu um motorista ser multado por não dar preferência ao ciclista ou por tirar fina, conforme prevê o código de trânsito?), moderação de tráfego (velocidade menor nas vias incentiva os deslocamentos a pé e por bicicleta).

É necessário que os gestores públicos e jornalistas comecem a pedalar. Já que, no discurso, muitos veneram a bicicleta como opção limpa e saudável de transporte, gostaria de ver secretários de transporte, diretores de órgãos de trânsito e prefeitos indo ao trabalho e às compras de bicicleta. Que belo exemplo seria aos demais cidadãos.

Sorocaba e as bicicletas

Sorocaba sediou, no início deste mês, a segunda edição do Bicicultura, evento que reúne pessoas engajadas na luta por uma mobilidade sustentável, com foco na bicicleta. A cidade é um exemplo de que só investimento direto em ciclovia não basta. Apesar de já contar com 65 quilômetros de vias vermelhas para ciclistas, o fluxo de usuários ainda é baixo. E o tráfego de ciclistas fora da ciclovia revela-se agressivo. As garantias de circulação de pedestres e ciclistas previstas no código de trânsito, como a preferência nos cruzamentos, são desrespeitadas.

Uma notícia do jornal impresso Cruzeiro do Sul, de Sorocaba, demonstra mais um caso de anti-jornalismo. Durante o Bicicultura, eu mais outros colegas ciclistas conversamos com o prefeito, Vitor Lippi, que havia proferido palestra. Parabenizei o trabalho realizado na cidade e comentei sobre alguns problemas detectados ao pedalar pela cidade, em especial a tinta usada na pintura da ciclovia e o risco do tráfego compartilhado fora das vias exclusivas para ciclistas.

No dia seguinte (3/12), descobri que fui citado numa matéria sobre ciclovias. Eu sequer dei entrevista para qualquer jornalista. Resumindo o caso, o suposto profissional da área de jornalismo ouviu a conversa com o prefeito, fez as anotações que quis, perguntou meu nome para alguma pessoa do evento e expôs críticas ao prefeito com base em minhas declarações. Curiosamente, a matéria não informa que, no início da conversa, eu havia elogiado o investimento no transporte por bicicleta.

Não bastassem o desconhecimento e o descaso governamentais com o a mobilidade sustentável, os cicloativistas ainda têm que lidar com o desserviço prestado por jornalistas sem conhecimento do assunto ou mal-intencionados.

Confira as duas matérias mencionadas no artigo.
- Notícia veiculada no jornal O Diário (Maringá-PR):

- Notícia publicada no jornal Cruzeiro do Sul (Sorocaba-SP):